Clément HOMS
Lenin, Stálin, a URSS e a modernização retardatária soviética
O texto a seguir, escrito por Clément Homs e originalmente publicado na página PALIM PSAO em 2017, na ocasião do centenário da Revolução Russa, consiste num breve resumo do argumento de Robert Kurz em O colapso da modernização (1991) de que o assim chamado "socialismo real" soviético (ou derivado dele) nunca foi outra coisa senão um modelo de "capitalismo de Estado" -- não apenas porque os bolcheviques emulavam uma classe burocrática burguesa e sacro-santa (como os anarquistas e a oposição comunista já denunciavam no calor dos acontecimentos!), mas porque as categorias fundamentais do capital (valor, trabalho, mercadoria) foram instaladas com sucesso naquela imensa extensão territorial por meio de um violento processo de modernização retardatária posto em curso pelo Partido/Estado.
Mas a teoria do colapso elaborada por Kurz não é restrita à explicação das ruínas de uma máquina estatal monstruosa que regulou por quase um século a linguagem binária do "sistema-mundo". O colapso é uma tese que trata, antes de mais nada, da crise do próprio capital - que se agrava a cada dia que passa, como previsto, sem nunca se superar como esperado.
Por uma triste coincidência este texto vai ao ar em 18 de julho de 2020, dia que marca oito anos desde o falecimento de Robert Kurz, que consideramos como um amigo. Que fique registrada aqui nossa homenagem à sua presença em nossa época.
IK
Em sua obra O colapso da modernização – da derrocada do socialismo de caserna à crise do mercado mundial, publicada em 1991, Robert Kurz desenvolve, pela primeira vez ao grande público, diversas das principais características da crítica do valor.
Por ocasião do centenário da revolução de 1917 na Rússia, retomaremos aqui, na forma de anotações, algumas das proposições contidas neste livro a respeito da experiência soviética. Se esta não tem nada de “revolução traída”, também o conceito de “totalitarismo” já é há bastante tempo criticado pelos historiadores do fascismo, do nazismo ou do comunismo (ver por exemplo as obras de Ian Kershaw ou de Pierre Aycoberry, La question nazie). Dizer que isso cheira às ideologias de autolegitimação nascidas da Guerra Fria é pouco, e com as quais, aliás, contribuirão alguns filósofos, à serviço de uma crítica afirmativa do existente, ainda encerrada nos limites da matriz fetichista à priori.
Em certo sentido, o conceito “capitalismo de Estado” tinha ainda o inconveniente de conter, de forma oca, uma maneira limitada (truncada) de anticapitalismo, que identificava o capitalismo apenas com as classes dominantes (uma forma de “classismo”), tematizando aí apenas a crítica da “mais-valia” num sentido puramente sociológico – quer dizer, no sentido superficial de sua “apropriação” por uma “classe capitalista”, e, no caso da União Soviética, por um “Estado-partido”. O problema posto então não era a forma do valor funcionando de maneira fetichista, enrolando-se em espiral ao entorno da substância do capital que é a abstração-trabalho. O que se denunciava como escândalo era apenas sua “distribuição desigual” – não mais por uma burguesia capitalista, mas por uma nova classe burocrática da URSS. Este “marxismo do trabalho” veiculado pelas oposições comunistas aos Bolcheviques – e por isso mesmo muito mais simpáticas de um ponto de vista político – permanecia, no fim das contas, preso à ideologia de uma simples “justiça redistribuidora”, afirmando positivamente o trabalho, o modo de produção industrial como algo puramente técnico e possivelmente extracapitalista, afirmando também a riqueza abstrata produzida pelo capital (o valor). Tomando por lebre a aparência trans-histórica do “trabalho”, este último foi percebido pela “ultra-esquerda” marxista como um princípio trans-histórico e ontológico de estruturação da vida social em todas as sociedades humanas. A ideia de uma riqueza social produzida por todos (e portanto universal) graças ao dispêndio de trabalho humano (concebido como um fundamento ontológico) era apresentada como se fosse oposta à sua “apropriação para fins privados”; dito de outro modo: a uma ideia de produção industrial naturalizada e potencialmente extra-capitalista opunham-se as categorias de propriedade privada e mercado – as únicas identificadas como capitalistas. A revolução socialista, que seria então comunista, era assim necessariamente percebida como uma transformação do modo de distribuição, uma simples crítica ao mercado e à propriedade privada, projetando no comunismo a categoria “trabalho” e o modo de produção industrial, que são característicos do capitalismo. Essa revolução, que já não tratava mais de uma auto-abolição do proletariado e do trabalho, mas sim de uma auto-realização do proletariado e afirmação do trabalho, implicava ainda numa “missão civilizatória” de implementação forçada da forma de vida capitalista, e não sua abolição. Este marxismo tradicional, que tanto o bolchevismo como sua crítica comunista compartilham, reduzia de maneira “sociologista” demais a questão da dominação social e da exploração sob o capitalismo a uma simples dominação e exploração de classe no interior de um combo de formas sociais fundamentais que nunca foram interrogadas. Desse modo, obliterou-se o núcleo duro da crítica marxiana à economia política, a crítica categorial e a crítica do fetichismo como inversão real (ver: Anselm Jappe, As Aventuras da mercadoria). Essa forma anticapitalismo ainda limitada (truncada) não conseguiria, nem histórica nem logicamente, ficar à par da crítica radical da natureza da produção, do crescimento, da produção industrial como a materialização adequada do processo de valorização, do trabalho e do valor como riqueza abstrata específica da forma de vida social capitalista.
Como nos chama atenção Gabriel Ferreira Zacarias, quando nos mostra que Debord, ao tratar da URSS[1], se aproxima notavelmente da caracterização marxiana do capitalismo como um “sujeito autômato”, está claro que Debord deu um pontapé inicial para além do conceito de “capitalismo de Estado” da ultra-esquerda, incluindo sua teorização feita por Castoriadis e Socialismo ou Barbárie. Sua crítica vai mais longe de fato no momento em que, na tese 104 de A Sociedade do espetáculo, ele diz: “ela [a burocracia] é a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil que mantém o trabalho-mercadoria. É a evidência da economia separada, que domina a sociedade a ponto de recriar, para seus próprios fins, a dominação de classe que lhe é necessária: o que equivale a dizer que a burguesia criou um poder autônomo que, enquanto subsistir esta autonomia, pode até prescindir de uma burguesia”
Em sua obra, Kurz não busca uma alternativa teórica ao conceito de “capitalismo de Estado”, mas sim complementá-lo e aprofundar sua pertinência através da elaboração de um conceito. Seu objetivo é entender a experiência soviética dessa vez de maneira mais fundamental, mais radical (ir à raiz do problema!), a partir do plano abstrato que constitui, segundo Marx, a essência do capitalismo, e não simplesmente de suas formas fenomênicas, demonstrando o problema da assincronia da gênese histórica do capitalismo ao redor do mundo. Esta tarefa era inédita e de peso, pois a produção teórica precisava tanto compreender a realidade do modo de produção soviético a partir das formas básicas do capitalismo (o trabalho, o valor, o dinheiro e a mercadoria) quanto denunciar aquilo que vinha desde o marxismo tradicional dos Bolcheviques (e não apenas deles) que era uma forma limitada (truncada) de anticapitalismo, que ontologiza e afirma justamente aquilo que, paradoxalmente, é o próprio núcleo do capitalismo. Essa proposta de se compreender um objeto-fenômeno histórico a partir da retomada de debates teóricos fundamentais que nos levam ao plano das abstrações essenciais do capitalismo, isso vinha do método indicado por Marx (“erguer-se do abstrato ao concreto” – introdução aos Grundrisse) e veio a ser uma nova demonstração da importância da prática da teoria crítica como meio de se interpretar a história de maneira adequada e assim visar de fato uma possibilidade de emancipação.
Quando compreendida sobre este plano mais fundamental que é, segundo o olhar da crítica categorial marxiana, o plano das abstrações, a URSS nunca passou de uma variação da sociedade mundial da mercadoria. Tratava-se de uma “Revolução francesa do Leste”, segundo Kurz, uma “modernização retardatária”, quer dizer: a introdução violenta, por meio do Estado, dos mecanismos básicos da produção de valor em um país “atrasado” que, de outro modo, não poderia nunca se tornar parte autônoma do mercado mundial. Os métodos do capitalismo de Estado soviético foram, aliás, parecidos com aqueles colocados em prática no Oeste do século XVI ao XIX. A modernização retardatária não pode ser reduzida ao seu aspecto sócio-técnico, no sentido de uma simples industrialização atrasada – como poderia pensar uma crítica anti-industrial. O que está fundamentalmente em jogo aqui é o estabelecimento tardio das formas sociais de um novo sistema de produção de mercadorias, que implicava substituir todas as relações sociais pré-modernas pela monetarização e economização de todas as relações sociais: a constituição de uma nova comunidade material do capital.
A elaboração do conceito de “modernização retardatária” foi um dos primeiros resultados promissores da “revolução teórica” inaugurada pelo Krisis em 1987, e sobre o qual podemos encontrar uma apresentação mais detalhada no seguinte artigo: Modernização retardatária: capitalismo de Estado, socialismo realmente existente, URSS, decolonização e desenvolvimento. Sob o olhar deste novo conceito, que compreende o concreto a partir de suas determinações abstratas mais simples, se a URSS nunca foi “socialista”, isso não se deveu apenas à ditadura de uma camada de burocratas – como afirmava a esquerda anti-stalinista que, opondo ao Estado a “forma-conselho” e, mais adiante, a “autogestão”, deixou intacta e fora de questão a ontologia capitalista que, de certa maneira, não deixava de afirmar positivamente. A verdadeira razão do caráter não-socialista da URSS era o fato de que as categorias centrais do capitalismo – mercadoria, valor, trabalho, dinheiro – nunca foram abolidas. O que se pretendia era apenas geri-las “melhor”, à “serviço dos trabalhadores”. Assim em 1989-1991, o que veio abaixo não foi uma “alternativa” ao sistema capitalista, mas sim “o elo mais fraco” desse mesmo sistema. Para ilustrar nossos argumentos utilizaremos citações de Lenin e Stálin, e também mostraremos como é que a Rússia contemporânea reivindica positivamente, em pleno século XXI, a herança direta da modernização retardatária operada pelo partido Bolchevique, analisando os discursos de Vladimir Putin.
1.
Sociologismo da luta de classes e invólucro da forma burguesa
A ilusão de um Estado social capitalista pode ser encontrada de maneira exemplar em Lenin, que declara que o Império alemão era um modelo para a economia soviética nascente. É conhecida sua apologia aos correios alemães, que ele toma como modelo de organização para seu socialismo em "Estado e Revolução", escrito no fim do verão de 1917:
“Um espirituoso social-democrata alemão, mais ou menos nos anos 1870, disse que os correios eram um modelo de empresa socialista. Nada mais justo. Os correios são agora uma empresa organizada segundo o modelo do monopólio capitalista do Estado. O imperialismo transforma progressivamente todos os trusts em organizações deste tipo. Os “simples trabalhadores”, famintos e sobrecarregados de trabalho, permanecem submetidos aqui à burocracia burguesa. Porém o mecanismo de gestão social já está pronto. Uma vez derrubados os capitalistas, uma vez quebrada pela mão de ferro dos operários armados a resistência dos seus exploradores, uma vez demolida a máquina burocrática do Estado atual, estaremos diante de um mecanismo admiravelmente aperfeiçoado, livre do “parasita”, e que os próprios trabalhadores, unidos, podem muito bem pôr em funcionamento, contratando técnicos, contramestres e guarda-livros e pagando-lhes, a todos, pelo seu trabalho, como a todos os funcionários “públicos” em geral, um salário de operário. Eis a tarefa concreta, prática, imediatamente realizável em relação a todos os trustes, que deverá libertar da exploração os trabalhadores, levando em conta a experiência praticamente iniciada, no domínio governamental, pela Comuna de Paris. Toda a vida econômica nacional organizada como os correios, de modo que os técnicos, os fiscais e os guarda-livros recebam um vencimento que não exceda o salário dos operários, sob a direção e o controle do proletariado armado – eis nosso objetivo imediato. Eis o Estado que necessitamos, e sua base econômica”.
Em maio de 1918, Lenin fala mais em seu texto “Sobre o infantilismo “de esquerda” e as ideias pequeno-burguesas”, onde busca instrumentalizar diretamente o capitalismo de Estado (que estará no fundamento de seu horizonte revolucionário limitado/truncado):
“O capitalismo de Estado é incomparavelmente superior, do ponto de vista econômico, à nossa economia atual, isto em primeiro lugar. E em segundo, nada há nele de temível para o Poder Soviético pois o Estado soviético é um Estado onde está assegurado o poder dos operários e dos pobres. [...] Para esclarecer mais ainda a questão, citaremos em primeiro lugar um exemplo concretíssimo de capitalismo de Estado. Todos conhecemos esse exemplo: a Alemanha. Temos aqui a “última palavra” da grande técnica moderna capitalista e da organização planificada à serviço do imperialismo junker-burguês. Apague as palavras sublinhadas, substituía o Estado militar-junker-burguês-imperialista por também um Estado, mas um Estado de outro tipo social, de outro conteúdo de classe: o Estado soviético, isto é, proletário, terá todo o conjunto de condições que dá no socialismo. O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista, concebida segundo a última palavra da ciência moderna, sem uma organização estatal planificada que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais rigorosa observância de uma norma única na produção e na distribuição dos produtos.”
Em O colapso da modernização (1991), Kurz demonstra que tais afirmações não são apenas características de Lenin e dos bolcheviques, como de todo o movimento operário (igualmente no Ocidente), até mesmo em meio aos “radicais de esquerda” que se opuseram à Lenin nas disputas que se seguiram. O fundamento teórico e ideológico desse modo de pensamento se caracteriza por uma compreensão estranhamente sociologista da socialização e das formações sociais históricas. A teoria marxista tornada marxismo vulgar roubou de nós a crítica formal da reprodução burguesa moderna. A possibilidade de um desenvolvimento fino da crítica marxiana da forma-mercadoria, que chega no fetichismo, foi eliminada – este conceito, por sua vez, foi proscrito para fora da teoria e da história: foi ou considerado como algo “obscuro” ou se degradou na ideia de um simples fenômeno subjetivo da consciência.
No lugar de um conceito que compreende a forma do sistema produtor de mercadorias e da história de usas condições, apareceu uma compreensão redutora de “luta de classes” como suposto fundamento essencial da socialização, que de constitutum se transforma em constituens: o fenômeno derivado das classes sociais acabou convertido num fundamento indiscutível. Não se criticará mais o Capital propriamente dito enquanto relação, mas sim “os capitalistas”, que se tornam aparentemente sujeitos ao personificar a relação social da mercadoria, porém desprovidos do caráter do verdadeiro sujeito. As “classes” mistificadas como meta-sujeitos sociais adquirem um caráter familiar, assim como os deuses antigos se apresentavam com características terrestres. Desse modo, a categoria social analítica da “classe operária” se convertia em uma pessoa coletiva imediatamente dotada de uma identidade consistente, que agia historicamente independentemente das pessoas realmente empíricas.
A identidade da classe reencontrava seu fundamento numa ontologia do trabalho equivocada, que não era compreendida como um momento e um elemento do fetichismo da mercadoria, mas num sentido quase bíblico (mais precisamente “protestante”), como se fosse um ser eterno da humanidade que só pode ser violado por algo externo a ele, pela ação de sujeitos “exploradores”, que eram “os capitalistas”. Por outro lado, isso poderia ser visto inversamente, através da pretendida liberação da relação com o capital conhecida como simples perda de poder dos “capitalistas”, no pior dos casos sob a forma de uma liquidação jacobina. As críticas feitas à Lenin pelos “radicais de esquerda” partiam muitas vezes de posições ainda mais burguesas-jacobinas[2], propondo simplesmente “a eliminação total da burguesia” como alternativa ao “Capitalismo de Estado”. A argumentação de Lenin precisava ser plausível para a compreensão do velho movimento operário. Enquanto o trabalho fosse afirmado como fundamento positivo para qualquer “socialismo” pretendido, independentemente de sua determinação formal sócio-histórica, isso seria igualmente válido para as categoriais de base do sistema de produção de mercadorias. Faltava à Lênin uma teorização completa do trabalho abstrato como substância do capital (e não somente a ele). Para ele, este [o trabalho abstrato] reaparecia como reflexão positiva em sua compreensão grosseira, canalha e desconceitualizada da “compatibilidade econômica” ou do “mecanismo da gestão social da economia”.
2.
Lênin : “Entrar na escola do capitalismo de Estado dos alemães”
Há outra citação de Lênin que demonstra bem a natureza do modelo bolchevique como modernização retardatária burguesa, de novo tirada do texto de Lênin escrito em maio de 1918 “Sobre o infantilismo “de esquerda” e as ideias pequeno-burguesas”:
“Enquanto a revolução ainda tarda a “eclodir” na Alemanha, nosso dever é aprender com o capitalismo de Estado dos alemãos, nos dedicar a assimilá-lo com todas as nossas forças, proceder com os métodos ditatoriais para implatá-lo na Russia ainda mais rápido do que fez Pedro Primeiro com as morais ocidentais na velha Rússia bárbara, sem recuar diante do emprego de métodos bárbaros contra a barbárie. Se entre os anarquistas e socialistas revolucionários de esquerda (me lembrei sem querer dos discursos feitos por Kareline e Gue no Comitê executivo) houver pessoas capazes de raciocínios narcísicos como que não seria digno de nós, revolucionários, “aprender” com o imperialismo alemão, será preciso dizer-lhes o seguinte: uma revolução que leva essa gente a sério seria irremediavelmente (e muito merecidamente) perdida”.
Vê-se aí a identidade (e a continuidade) com os esforços de modernização que Lenin estabeleceu entre as políticas dos tzares e aquelas que devem empreender os bolcheviques. Podemos reencontrar uma mesma continuidade modernizadora entre os reis franceses, os fisiocratas e a obra dos revolucionários franceses, um elo interno apontado por Tocqueville em O Antigo regime e a Revolução na modernização das formas do Estado francês. É este o problema da modernização burguesa retardatária que, na revolução russa, assume a máscara de “questão de socialismo real” e foi se reescreve como tal. A violência da modernização retardatária burgueso-soviética foi uma condensação acelerada dos dois séculos de fogo e sangue da acumulação primitiva que aconteceu ocidente europeu: estatismo neo-mercantilista, revolução francesa e jacobinismo, “acumulação primitiva socialista” (Preobrazhenski), ética “protestante” do trabalho, processo de industrialização e modelo de economia de guerra do Império alemão (a famosa referência aos correios e aos caminhos de ferro). A forma fenomênica do lado abstrato do trabalho, quer dizer, o lado concreto do trabalho, em sua nova configuração taylorizada, também deveria servir, segundo Lenin, a uma racionalização de toda a sociedade: por que é que apenas o processo de trabalho se beneficiaria disso? (Francamente...). É claro que a modernização retardatária alemã da segunda metade do século XIX teria sido vista como modelo pela quantidade de pessoas dentro do movimento operário (ver, notavelmente, o Império otomano e o Japão de Meiji), mas não só isso. De fato, o “socialismo” seria idêntico ao “Estado racional” de J.-G. Fichte (em O Estado comercial fechado), que desde o início do século XIX já fornecia sem saber o modelo de todas as futuras ondas de modernização retardatárias europeias, japonesa, russa, assim como daquelas decorrentes das descolonizações que se seguiram após a Segunda guerra mundial (as ditaduras de modernização).
O “mercado planificado” do Leste, como indica seu próprio nome, não negligenciava em nada as formas sociais e as categoriais do sistema produtor de mercadorias. Consequentemente, no “socialismo real” apareciam todas as categorias fundamentais da relação-capital: salário, valor e lucro. Este elo interno entre a revolução de outubro e a Rússia de Vladimir Putin é logicamente reconhecido e afirmado por este último, quando reconhece a função modernizadora fundamental que a URSS representa para a Rússia atual:
“Isso que eu trago aqui para vocês são minhas conclusões pessoais. A economia planificada tem certas vantagens, ela oferece a possibilidade de concentrar os recursos do Estado para a realização de tarefas essenciais. Foi assim foram resolvidas as questões de saúde pública, o que é um mérito incontestável do Partido comunista daquela época. Foi assim que foram resolvidas as questões de educação – mérito incontestável do Partido comunista da época. Foi assim que foram resolvidas as questões de industrialização, e particularmente em matéria de Defesa. Eu penso que sem a concentração de recursos estatais, a União Soviética não poderia ter se preparado para a guerra contra a Alemanha nazista. E a possibilidade de uma derrota teria sido grande, com consequências catastróficas para nossa estrutural estatal, para o povo russo e os outros povos da União soviética. [a economia planificada pelo Estado] Tem portanto, efetivamente, vantagens incontestáveis”. (Discurso de Vladimir Putin, 24 de janeiro de 2016).
Apenas um pensamento “classista” com os pés presos no tapete do sociologismo e do reducionismo fenomenológico poderia, e ainda pode, perder de vista a identidade formal entre as diferentes vias e etapas da “modernização” burguesa. Esta tradição estatista da modernidade primitiva foi passada como herança direta ao estatismo da esquerda atual, e constitui o maior obstáculo para toda transformação radical do presente.
3.
Stalin e a modernização burgueso-soviética
Sobre o fato de que não se tratava da “construção do socialismo”, mas sim de uma construção retardatária do capitalismo, Josef Stálin tinha, aliás, toda razão, como vemos em seu manual de História do partido comunista da URSS (1938):
“Evidentemente que grandes obras dessa amplitude exigem investimentos de bilhões de rublos. [...] Só que, naquele momento, nosso país ainda não era nada rico. Aí estava uma das principais dificuldades. Em geral os países capitalistas montaram sua indústria pesada com recursos provenientes de fontes estrangeiras: espoliando suas colônias, impondo tributos aos povos derrotados, recorrendo a empréstimos do exterior. Por princípio, para se industrializar, o país dos Sovietes não poderia recorrer a este sórdido meio de buscar fundos que consiste na pilhagem de povos colonizados e derrotados. A URSS também não tinha como recorrer a empréstimos do exterior pela simples razão de que os países capitalistas recusariam. Era preciso encontrar os recursos necessários no interior do próprio país”. (STALIN, Josef. Geschichte der Kommunistischen Partei der Sowjetunion (Bolschewiki), Viena, 1938.)
Se o capital-dinheiro só poderia ser exclusivamente arranjado a partir dos meios do próprio país, isso significava que o “material humano” deveria ser moído sem nenhuma piedade afim de atingir a rigorosa produção da riqueza abstrata (o valor), com o objetivo de então transformar dinheiro em mais dinheiro. Não foi tanto a falta de meios externos que reforçou a pressão da acumulação interna, senão o caráter retardatário de todo o processo, que exigia despesas consideravelmente maiores do que as que foram necessárias para engatar a acumulação primitiva no Ocidente. É compreensível que, num configuração histórica tal, bastante específica, o Estatismo precisasse desempenhar um papel ainda mais importante do que no Ocidente. Aquilo que os observadores burgueses sempre entenderam como um momento do “socialismo”, e que Johann-Gottlieb Fichte havia chamado de “Estado racional” (em 1800, na obra O Estado comercial fechado) tornaria-se assim realidade. Stalin então era a continuidade de Lenin, e continuava colocando o problema da modernização retardatária a reescrevendo como uma “questão de socialismo real”. Se lermos corretamente, deixando a ilusão histórica do lado de fora, encontraremos esta mesmíssima reflexão e formulação do problema no manual de Stálin – a respeito dessas “fontes necessárias no interior do país” ele escreveu:
“E na União Soviética foram encontrados esses recursos! A URSS possuía fontes de acumulação que nenhum Estado capitalista chegou a conhecer. O Estado soviético dispunha de todas as empresas e terras que a Revolução Socialista de Outubro arrancou dos capitalistas e latifundiários, dos meios de transporte, dos bancos e do comércio interior e exterior. Os lucros das fábricas e empresas estatais, do sistema de transporte, do comércio, dos bancos, não eram mais usados pela classe parasitária dos capitalistas: mas sim aplicados para a ampliação da indústria. [...] Todas essas fontes de renda das quais dispunha o Estado soviético podiam fornecer centenas de milhões e até mesmo bilhões de rublos para criar a indústria pesada. Era preciso conduzir o negócio de modo a gerir seus bens e estabelecer a mais estrita economia de despesas, racionalizar a produção, diminuir os preços de custo, suprimir as tarifas improdutivas, etc.” (STALIN, Josef. Geschichte der Kommunistischen Partei der Sowjetunion (Bolschewiki), Viena, 1938.)
Com uma inocência teórica total, Stálin descreve aqui a lógica da acumulação do sistema produtor de mercadorias, que produz seus “benefícios” abstratos encarnados na forma de dinheiro, distanciando as necessidades sensíveis. “Pouco” dinheiro se metamorfoseia em “mais dinheiro” por meio de seu próprio movimento no processo de administração dos negócios que, sob comandado estatal (do Estado expropriador da “classe parasita” dos antigos “capitalistas”) não se apresenta mais como capitalista. O “capitalismo de Estado”, tão pobremente teorizado por Lenin, e muito mal limitado pelo “socialismo”, se dilui no conceito de socialismo do velho movimento operário para formar o ente real do regime de acumulação estatal.
ANEXO
Lenin, a modernização burgueso-soviética e o problema da constituição de uma nova “workhouse” [3] à céu aberto
Algumas passagens do texto de Lenin As tarefas imediatas do poder soviético [4], publicado em 28 de abril de 1918 no nº83 do Pravda e nos suplementos do jornal Izvetsia do Comitê executivo central da Rússia, nº85:
“Faz cuidadosa e honestamente as contas do dinheiro, gere de modo económico, não sejas preguiçoso, não roubes, observa a mais rigorosa disciplina no trabalho — estas são precisamente as palavras de ordem que, justamente ridicularizadas pelos proletários revolucionários quando a burguesia encobria com discursos semelhantes o seu domínio como classe dos exploradores, se tornam agora, depois do derrubamento da burguesia, as palavras de ordem principais e imediatas do momento.” […] “Quanto à segunda questão, do significado precisamente do poder ditatorial unipessoal do ponto de vista das tarefas específicas do momento presente, devemos dizer que toda a grande indústria mecanizada — isto é, precisamente a fonte e a base material, produtiva, do socialismo — exige uma unidade de vontade absoluta e rigorosíssima que dirija o trabalho comum de centenas, milhares e dezenas de milhares de pessoas. Tanto tecnicamente como economicamente e historicamente esta necessidade é evidente e quantos pensaram no socialismo sempre a reconheceram como sua condição. Mas como pode ser assegurada a mais rigorosa unidade de vontade? Por meio da subordinação da vontade de milhares à vontade de um só. Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho comum, recordar mais a suave direcção de maestro. Se não existir uma disciplina e uma consciência ideais, ela pode tomar as formas ásperas da ditadura. Mas de um ou de outro modo, a subordinação sem reservas a uma única vontade é absolutamente necessária para o êxito dos processos de trabalho, organizado segundo o tipo da grande indústria mecanizada.” […] “É preciso consolidar o que nós próprios conquistámos, o que nós próprios decretámos, legalizámos, discutimos e projectámos, consolidar em formas estáveis de uma disciplina do trabalho diária. Esta é a tarefa mais difícil, mas também a mais grata, pois só a sua resolução nos dará a ordem socialista. É preciso aprender a conjugar o democratismo dos comícios das massas trabalhadoras, tempestuoso, que corre como a cheia primaveril, que transpõe todas as margens, com a disciplina férrea durante o trabalho, com a obediência sem reservas à vontade de uma só pessoa, do dirigente soviético, durante o trabalho. Ainda não aprendemos isto. Mas aprenderemos.” […] “Se os operários e os camponeses pobres conscientes e avançados, ajudados pelas instituições soviéticas, conseguem num ano organizar-se, disciplinar-se, corrigir-se, criar uma poderosa disciplina do trabalho, então num ano poderemos libertar-nos deste «tributo», que poderá mesmo ser reduzido antes ... exactamente na medida dos êxitos da nossa disciplina e organização de trabalho operárias e camponesas. Quanto mais depressa nós, operários e camponeses, aprendermos uma melhor disciplina do trabalho e uma técnica de trabalho mais elevada, aproveitando para isto a ciência dos especialistas burgueses, tanto mais depressa nos livraremos de todo o “tributo” a estes especialistas.” […] “também é uma condição do ascenso económico a elevação da disciplina dos trabalhadores, a habilidade no trabalho, a eficácia, a intensidade do trabalho, a sua melhor organização.” [...] É preciso colocar na ordem do dia, aplicar na prática e experimentar o salário à peça, aplicar muito do que há de científico e progressivo no sistema de Taylor, regular o salário com os balanços gerais da produção ou com os resultados da exploração do transporte ferroviário, por barco, etc, etc. […] “A possibilidade de realizar o socialismo é determinada precisamente pelos nossos êxitos na combinação do Poder Soviético e da organização soviética da administração com os últimos progressos do capitalismo. Tem de se criar na Rússia o estudo e o ensino do sistema de Taylor, a sua experimentação e adaptação sistemáticas. Ao mesmo tempo, caminhando para a elevação da produtividade do trabalho, é preciso ter em conta as particularidades do período de transição do capitalismo para o socialismo, que exigem, por um lado, que sejam lançadas as bases da organização socialista da emulação e, por outro lado, exigem a aplicação da coacção para que a palavra de ordem de ditadura do proletariado não seja maculada por uma prática de brandura excessiva do Poder Soviético.” […] “o tribunal é um instrumento de educação na disciplina. [...]por isso quem viola a disciplina do trabalho em qualquer fábrica, em qualquer empresa, em qualquer assunto, é culpado dos tormentos da fome e do desemprego; que é necessário saber encontrar os culpados disto, entregá-los ao tribunal e puni-los implacavelmente.” […] “Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho comum, recordar mais a suave direcção de maestro. Se não existir uma disciplina e uma consciência ideais, ela pode tomar as formas ásperas da ditadura. Mas de um ou de outro modo, a subordinação sem reservas a uma única vontade é absolutamente necessária para o êxito dos processos de trabalho, organizado segundo o tipo da grande indústria mecanizada. [...] essa mesma revolução, precisamente no interesse do seu desenvolvimento e consolidação, precisamente no interesse do socialismo, exige a obediência sem reservas das massas à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho.” […] “E toda a nossa tarefa, a tarefa do partido dos comunistas (bolcheviques), que é o intérprete consciente da aspiração dos explorados à libertação, é dar-se conta desta viragem, compreender a sua necessidade, pôr-se à cabeça das massas esgotadas e cansadas que procuram uma saída, conduzi-las pelo caminho certo, pelo caminho da disciplina do trabalho, pelo caminho da conciliação das tarefas de fazer comícios acerca das condições de trabalho com as tarefas da subordinação sem reservas à vontade do dirigente soviético, do ditador, durante o trabalho.”
[1] ZACARIAS, Gabriel. “Eros e civilização na sociedade do espetáculo: Debord leitor de Marcuse”. Dossiê Herbert Marcuse, Parte 1(Dissonância: Revista de Teoria Crítica , v. 2, n. 1.1), p. 215-238, junho de 2018.
[2] O caráter burguês-jacobino dos bolcheviques (o que naturalmente implica no caráter girondino de seus adversários mencheviques) não apenas é notado com frequência, como é reivindicado por eles próprios, e em especial por Lênin. O fato que isso lhes pareça uma comparação histórica gloriosa, ainda que sua própria revolução correspondesse a “um conteúdo de classe totalmente distinto”, significa apenas uma reprodução irônica de seus erros a um meta-nível. A visão personificadora e sociologicamente redutora do “adversário”, que parece à primeira vista, rebaixa a solução e caracteriza o jacobinismo bolchevique como uma repetição do caráter essencialmente burguês das condições materiais do século XX.
[3] “Na história britânica, uma workhouse era um lugar onde as pessoas pobres que não tinham com que subsistir podiam ir viver e trabalhar. […] A vida em uma workhouse era intencionalmente dura, de forma a dissuadir a entrada daqueles em condições físicas para o trabalho e garantir que apenas os realmente necessitados as procurassem. Mas em áreas como a provisão de assistência médica gratuita e educação infantil, nenhuma das quais disponíveis aos pobres na Inglaterra vivendo fora das workhouses até o início do século XX, os habitantes destes locais tinham uma vantagem sobre a maioria da população, um dilema que as autoridades da Poor Law nunca puderam reconciliar. Com o avanço do século XIX, as workhouses gradativamente se tornaram refúgios para os idosos, enfermos e doentes, e na legislação de 1929 foi permitido às autoridades que tomassem as enfermarias das workhouses como hospitais municipais. Embora elas fossem formalmente abolidas pela mesma legislação em 1930, muitas continuaram a funcionar sobre a alegação de serem Instituições de Assistência Pública sob o controle das autoridades locais. Apenas com o Ato de Assistência Nacional de 1948 os últimos vestígios da Poor Law desapareceram, e com eles as workhouses.” – Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Workhouse
[4] Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1978, t2, pp 557-587, Edições Avante! — Lisboa, Edições Progresso — Moscovo. Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.36 pp 165-208. Transcrição: Partido Comunista Português Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo, 1977.
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